Artigo: Por que é tão difícil falar de sucessão com o produtor rural

*Por Diego Billi Falcão e Amanda Salis Guazzelli, advogados e fundadores da Governança Agro, associação sem fins lucrativos que presta consultoria para produtores rurais

Falar de sucessão nunca foi simples. Basta tocar no assunto para notar o desconforto, um silêncio que revela mais do que palavras. Não se trata de falta de interesse ou negação do futuro. Trata-se, muitas vezes, da dificuldade que o ser humano tem em lidar com o que remete à sua própria finitude de vida ou de protagonismo. No caso do produtor rural, isso ganha maior profundidade ao se somar a um vínculo profundo com a terra, com o negócio e com a identidade construída sobre o fazer.

Essa resistência tem raízes culturais, afetivas e práticas. No meio urbano, a sucessão vem sendo discutida há mais tempo, com modelos jurídicos, patrimoniais e organizacionais relativamente consolidados. No campo, esses modelos foram muitas vezes transportados de forma apressada, sem escuta, sem tradução, sem respeito às particularidades de quem planta, cria, colhe, arrisca e constrói com o próprio corpo. Levar ao produtor rural uma solução pronta, formatada por quem nunca passou uma safra, nunca viu a plantação deixar de brotar por falta de chuva ou ir toda por água abaixo – literalmente – pelo excesso dela, nunca teve que pagar o custeio no aperto, é o caminho mais rápido para o fracasso.

O impacto dessa abordagem imposta foi profundo. Para muitos produtores, sucessão virou sinônimo de abrir mão do que se construiu. De sair do comando. De doar patrimônio. De virar coadjuvante. É natural que esse modelo encontre resistência. E quando o diálogo não é conduzido com cuidado, o resultado é previsível: postergação, silêncio, negação e, mais adiante, conflitos familiares, insegurança jurídica, desorganização patrimonial e perda de valor.

Superar essa barreira exige mais do que método. Exige escuta. Diagnóstico. Tempo. Antes de falar em estrutura, é preciso entender o que está em jogo para aquele produtor específico: o medo de perder relevância, a dúvida sobre a capacidade dos filhos, a ausência de alguém que “segure o tranco”, o desejo de seguir ativo. Só a partir disso é possível construir um plano real, que leve em conta o que ele valoriza, o que ele teme, o que ele quer preservar e até onde está disposto a ir.

É por isso que, no campo, o caminho passa pela continuidade, e não pela sucessão no sentido tradicional. Continuar é diferente de ceder. Continuar é encontrar formas de seguir contribuindo, com novos papéis, com outros formatos, mas sem abrir mão do que foi conquistado ou de estar presente no negócio. É preparar a nova geração para quando chegar sua hora, e não porque o relógio de alguém marcou a hora de sair. Um bom plano não força saída, não antecipa ruptura, não empurra doações. Um bom plano respeita quem construiu e prepara quem virá.

Em muitos casos, o melhor plano é aquele em que o produtor mantém o bastão. Desde que isso seja bom para a empresa, para a família e para ele mesmo, essa é a decisão certa. A continuidade não exige desligamento. Exige preparo. Promove a convivência. E isso envolve formar a geração seguinte com consistência, com disciplina, com orientação para que, quando a transição acontecer, ela seja consequência de uma construção sólida, e não reação a uma emergência.

Esse modelo é o que evita vácuos. Evita conflitos. Evita que, na ausência de quem sempre decidiu, a empresa familiar se veja sem comando, sem direção e sem legado. A continuidade permite que as decisões estratégicas, como a transição de liderança, não sejam improvisadas. Elas são planejadas, testadas, ajustadas e respeitadas. E, quando chegam, não representam fim de ciclo, mas renovação dele.

Governança, nesse contexto, não é papelada. É ferramenta para organizar esse processo. Comitês, conselhos, acordos, estruturas jurídicas, tudo isso tem valor. Mas nada funciona sem escuta. Sem respeito à história de quem está no centro. E sem a coragem de olhar para a sucessão como algo mais profundo do que uma troca de nomes.

O que está em jogo é o destino de empresas familiares que sustentam boa parte do agro brasileiro. E o que está em falta não é técnica. É linguagem. É tradução. É sensibilidade. Para conversar com o produtor sobre continuidade, é preciso entender como ele enxerga o que construiu, e por que, para ele, abrir mão do controle pode parecer abrir mão de si.

O produtor não quer sair. E ele não precisa sair para que o processo comece. Mas se não começarmos a falar sobre isso com verdade, com escuta e com método, o que virá não será continuidade, será improviso. E isso custa caro.